terça-feira, 2 de junho de 2020

O VELHO VESTIDO QUE EU NÃO QUERIA DEIXAR MORRER


Tinha uma enorme estima por aquele vestido.
Bem sei, que no meu armário viviam outros vestidos, outros modelos, outras cores, mas aquele era diferente, especialmente diferente, por isso, o meu ego dele se apoderou e a ele teimosamente se apegou.
Vesti-o anos a fio. Nele via sempre a mesma beleza.
Recusava aceitar que o tempo tem a sua própria erosão, e eram as suas partes esgaçadas, que a muito custo me iam mostrando, que, pano-velho, novo nunca será!
Tínhamos uma incrível cumplicidade, e sempre que a estação mudava, era ele o primeiro a saltar do armário.
Éramos um para o outro.
Ele esperava por mim, eu… por ele esperava.

Vivemos muitos anos.

Cuidava-o como quem cuida do seu jardim, fertilizando-o com pequenos arranjos, cozendo-lhe aqui e ali, uma ou outra coisa, mudando-lhe os botões... pequenas-grandes-coisas que pareciam simples e hidratavam a ternura que por ele sentia.

Porém, com o tempo, com o uso, com a insistência de com ele continuar a partilhar dias solarengos de verão, os arranjos foram sendo cada vez mais desafiantes e complicados.

Ele queria sair da minha vida, e eu insistia em deixá-lo ficar.

Sempre que esgaçava um pouco mais, corria para a costureira, apertando-me cada vez mais nele, cheia de esperança, de conceder salvação, àquilo que no fundo sabia, não mais existir.

Cada Verão que passava, tinha mais a certeza de que um dia nos iríamos separar.

Estendia esse dia, como se estendesse massa de pizza, alimentado a ilusão que talvez fosse possível, voltar ao tempo em que nada precisava de ser remendado.

Curiosamente, tinha um vestido velho, que continuava a brilhar aos meus olhos e aos olhos de quem com ele me via.

- É a tua cara, fica-te tão bem…

Mas, como toda a “cara”, tem a sua “coroa”, o meu corpo também ele timbrado pelo tempo, não aguentou tanto aperto e o velho vestido finalmente esgaçou de vez, mostrando-me a simplicidade das mortes anunciadas, mesmo quando se insiste em não-deixar-morrer.

Sem qualquer possibilidade de mais remendos, morreu-me nos braços e nada mais pude fazer.
A sua hora tinha chegado e a minha também.
O tempo dita verdades a que a verdade por vezes, prefere mentir!

Olhei-o pela última vez.

Tinha perdido todo o brilho. Finalmente vi, que chamava vestido, a um tecido russo, esgaçado, remendado e sem vida.

Um dia foi um vestido, sim, mas há muito que não o era!
Encostei-o ao meu peito.
Foi parte importante do meu caminho e honrei-o por isso.
De seguida, olhei para o armário e reparei que não havia nenhum igual, e isso foi mágico e transformador!

Sem apego, estava agora liberta do inglório esforço, que é dar vida, ao que já morreu.

Foi então, que com ar de gozo o meu armário sorriu, ( no fundo, tinha acompanhado todo aquele meu apego durante anos), olhou-me os olhos, e disse-me baixinho...

- Sabes uma coisa, Mulher? Cada vestido é único, é um facto. Mas, tal como nós, todos têm o seu tempo. Olhaste tanto só para esse, que te esqueceste de vestir todos os outros.
É pena, pois muitos te querem bem e muitos chamaram por ti, só que cega, não os podias escutar…
Lembra-te sempre de uma coisa - há mais vida para além da vida, há mais mundo para além do mundo, há mais gente, para além de nós, há mais vestidos…muito mais vestidos, para além desse, ao qual por apego, precisaste de te encolheres para nele puderes caber!
E, seja lá porque aquilo que for, quem precisa de se encolher, nunca poderá ser feliz!!!  

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