sábado, 14 de maio de 2011

CONFLITO & INTIMIDADE – UMA HISTÓRIA BANAL

Naquele dia decidiram ver um filme juntos.
Ela abdicou da novela, ele do futebol e tudo parecia agora impune do castigo que é ser-se infeliz a dois.

Deram as mãos.
O filme começou.
No ecrã, a imagem de um deserto.
Árido, duro, mas…confortavelmente longínquo.
O silêncio pesava.
Porque não tinha o filme a magia de o fazer desaparecer?
E, as mãos dadas? Porque não teriam elas o poder de os aproximar?
O filme, esse continuava.
Que história banal, pensavam.
Dois caminhantes, perdidos no deserto em busca dum oásis imaginário que ambos sabiam não existir.

- Estás a gostar?
- Hum, hum..

O silêncio continuava a pesar.
Tudo que os rodeava parecia verbalizar que a verdadeira intimidade ultrapassa largamente os devaneios e as “ conquistas”materiais, bem como as palavras que nada sabem dizer.
Indiferente a qualquer deserto, estava a relva do jardim que continuava a crescer.
O sistema de rega disparou.
Ele olhou para o relógio confirmando se a hora estaria certa.
Respirou fundo, hora absolutamente certa.
Ela abanou a cabeça e balbuciou “ obcecado”
Ele ignorou.
O filme, esse continuava.
Que história banal, pensavam.
O que será que sobra destas mãos dadas, deste comando que hoje é dos dois, deste ecrã gigante?
A ela apetecia-lhe o passado.
A ele o entendimento.
A ambos a presença, a liberdade, a vida.
Os últimos anos foram duros. Desérticos.
Desprovidos de paz, de propósito, de intimidade.
Os seus corpos raramente se encontravam, e quando isso acontecia, limitavam-se a escorregar mecanicamente um no outro, sentindo na pele o suor da frustração de na epiderme já nada existir.
Conversas curtas e pontuais, onde murmuravam sons ávidos de comunicação e de... Intimidade.
Domingos solitários, cada um no seu computador.
Como opção, o supermercado, onde vazios de tudo se compensavam em prateleiras cheias da mágoa que é poder comprar, mas de nada servir.
De mãos dadas no sofá, esforçavam-se a olhar o mesmo ecrã, na ilusão de verem o mesmo filme.


O telefone toca.
Ela levanta-se. Ele nem percebe.

- Porque não paraste o filme?
- Pronto, começaste?
- Senta-te e vê que ponho para trás.

Ele pára o filme, mesmo sabendo que há filmes que não se podem parar.
O conflito instala-se.
Que bom era na vida poder parar o tempo.
Congelar os sentimentos, não ter que tomar decisões.
Incomoda-os saber que assim não é.
Mas, há coisas que a cobardia prefere ignorar.
No ecrã o filme continua, agora sem ninguém a assistir.
O sofá vazio, já não estranha.
Eles, cada um no deserto caminham pela sala.
Acompanha-os a certeza de que a única forma que têm de intimidade é o conflito.
E, que desta não podem abdicar.
O que sobrará se a deixarem ir?


No ecrã, o deserto.
Árido, duro, agora desconfortavelmente próximo.
No sofá de novo os dois.
Ele de um lado, ela do outro.
Que história banal, pensavam.
Dois caminhantes, perdidos no deserto em busca dum oásis imaginário que ambos sabiam não existir.
Há filmes mesmo estúpidos.
O sistema de rega parou.
Ele olhou para o relógio.
Ela ignorou.
O filme terminou.
Que história tão real, pensaram.





1 comentário:

  1. A morte é o premio que a vida nos dá
    Por termos vivido
    E se vivemos tão profundamente
    Que gastamos a própria vida
    Então a morte é uma morte conseguida
    Porque sem retorno.
    Ficam rostos perdidos na névoa da memória
    Que já não existe
    Ficam amores e cansaços
    Deixados para trás
    Como se nunca nos tivessem pertencido
    Ficam sobretudo esses outros
    Sem os quais a vida não nos fazia sentido.
    Restamos nós de frente para o mistério
    Face a face sem o negar
    Mas também sem o querer entender
    Afinal a vida chega e cansa suficientemente.
    Os outros são sempre a esperança
    Do que podiam ser mas não são
    Nós, para eles, o mesmo
    Resta o canto dos pássaros na manha clara
    O céu despido de milagres
    E esta ternura que nos acompanha sempre

    É pouco? É muito? Não sei!
    Só sei que para mim basta.

    15 de Maio de 11
    JC

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